Prezados Amigos e Clientes,
O Brasil vem experimentando um franco crescimento em ofertas públicas de ações e investimentos em ativos de renda variável, mesmo com o cenário adverso causado pela pandemia, e expectativa de acentuada queda do produto interno bruto (PIB) em 2020.
Conforme afirmam especialistas[1], este comportamento dos investidores pode ser atribuído, em parte, à queda de rentabilidade de aplicações conservadoras, fazendo com que pessoas físicas busquem ativos de maior risco (que, consequentemente, ofereçam maior retorno), e, também, à expectativa de uma rápida recuperação da economia no cenário pós-pandemia.
Com o crescente apetite por ativos de renda variável, nos parece relevante que o mercado Brasileiro observe com atenção outros modelos de captação de recursos. Analisar modelos praticados internacionalmente pode ser uma maneira de desenvolver um mercado sólido e maduro, mantendo a transparência e tutela aos investidores, fundamentais para a segurança do mercado.
Apesar da recente corrida de pessoas físicas para a bolsa, dados de maio deste ano revelam que a saída líquida de estrangeiros foi superior a R$65,5 bilhões, quantia recorde em nossa história, revelando uma grande percepção de risco em relação ao mercado Brasileiro. Diante desta realidade, a adoção de novos modelos, estruturas e veículos destinados a viabilizar ofertas públicas de valores mobiliários é uma prática que deve ser estimulada.
Analisaremos aqui, sucintamente, as Special Purpose Acquision Companies, ou SPACs, veículos de investimento que vêm sendo objeto de diversas initial public offerings (IPOs) nos Estados Unidos. Apesar de serem utilizados em território Americano desde 2003, estes veículos ainda são pouco conhecidos no Brasil, tendo ganhado notoriedade novamente no passado recente, devido ao volume expressivo captado em ofertas públicas Americanas.
As “Special Purpose Acquisition Companies” (“SPACs”) tiveram seu primeiro boom nos Estados Unidos em 2008. Na época, periódicos e revistas ressaltavam as vantagens destes veículos, e sua rápida proliferação e uso em ofertas públicas. Com a crise econômica de 2008, seu uso passou a ser muito mais limitado, sendo verificada uma severa redução no número de ofertas de SPACS, e do volume captado por oferta.
A partir do ano de 2016 as SPACs voltaram a ganhar o protagonismo de outrora, tendo o número de ofertas utilizando estes veículos atingido seu auge em 2019. No ano passado, foram realizadas 59 (cinquenta e nove) ofertas utilizando a estrutura de SPACs, com volume total captado superior a USD13,6 bilhões.
Conforme revelam dados divulgados pelo portal spacdata.com até o dia da elaboração do presente artigo, mesmo com o cenário de pandemia ocasionada pelo COVID-19, os Estados Unidos realizaram 29 IPOs de SPACs em 2020, com captação média de USD318 milhões, superando a captação média por oferta de 2019 (USD230,5 milhões)[2]. Com a esperada aceleração das ofertas públicas no segundo semestre, espera-se que estes números sejam ainda maiores do que os do ano passado[3].
Diante dessa expectativa de crescimento, é relevante analisarmos, com um pouco mais de atenção, o que são estes veículos. SPACs são sociedades empresariais constituídas com propósito de investir no capital de empresas existentes e operacionais. Por sua natureza, estes veículos não possuem operações, produtos, serviços ou vendas. São criados especificamente para um IPO e, no momento seguinte, os recursos captados pela empresa são revertidos para aquisição de participação em outras companhias (target companies).
Há quem afirme que estes veículos têm grandes semelhanças com fundos de investimento. Porém, a nosso ver, estas semelhanças estão apenas na maneira de captar recursos (isto é, no momento anterior ao investimento em determinada empresa).
Nas SPACs não estão presentes as figuras do gestor de carteiras e do administrador, o que pode, para muitos, significar uma dose adicional de riscos. Também não há um regulamento, manuais de compliance e/ou estruturas semelhantes aos controles previstos na Instrução CVM nº 558/15, que dispõe sobre o exercício profissional de administração de carteiras de valores mobiliários.
As SPACs são criadas e idealizadas por um sponsor, que pode ser um fundo de investimento, empresa ou pessoa de referência (geralmente um empresário de grande notoriedade ou fama). Como mencionado anteriormente, as primeiras SPACs surgiram em 2003 nos Estados Unidos, mas foi somente em 2008 que ocorreu o primeiro boom destes veículos de investimento. Até então, as principais SPACs haviam sido criadas por Steve Wozniak (co-fundador da Apple), George Tenet (Diretor da CIA entre 1997 e 2004) e Dan Quayle (Vice-Presidente Americano durante o Governo Bush), com ofertas públicas pontuais, e valores mais baixos do que os atualmente captados.
Isto revela uma importante característica das SPACs: por se tratarem de verdadeiros “cheques em branco”, a confiança é fator essencial para seu desenvolvimento e sucesso. Daí a importância da figura do sponsor – a pessoa de referência que apresentará o projeto ao mercado e se responsabilizará pela ideia e sucesso do projeto, além da destinação dos recursos captados.
Apesar de serem utilizadas em território Americano há mais de 15 anos, as SPACs ainda não possuem regramento próprio. As ofertantes se socorrem, na maioria dos casos, da Rule 419 do Securities Act de 1933, que trata das “blank check companies”. Esta regra exige que uma série de medidas de transparência e governança sejam adotadas em uma oferta de SPACs, inclusive elaboração de prospecto, fatores de risco, detalhes sobre a capitalização a ser realizada, dentre outros.
O investimento em uma SPAC pode representar oportunidade de obter grande upside – no passado esta possibilidade vinha acompanhada de uma grande dose de risco, inclusive com possibilidade de perda de todo o capital investido. Além de não haver segurança quanto ao modelo de SPAC como ferramenta de captação, o mercado ainda não entendia seu uso, limites, objetivos, sem falar nas incertezas quanto à destinação dos recursos e à atuação do sponsor.
Outro aspecto que tornava as ofertas objeto de críticas eram os custos envolvidos: os fees de uma oferta de SPACs eram mais caros do que de outras ofertas tradicionais, podendo facilmente superar 5% do total captado na oferta.
Ainda no que diz respeito aos riscos, muitos investidores se viam preocupados com a possível demora para concluir o investimento na empresa target, pois os recursos captados, em muitos casos, não eram investidos no transcorrer do processo de negociação e investimento, o que fazia com que não rendessem qualquer juros, deixando os investidores à mercê do sucesso na aquisição de participação na target company.
Com o desenvolvimento destas ofertas, além da redução dos custos de captação, os próprios investidores passaram a exigir maior segurança, melhor governança e skin in the game por parte dos sponsors.
Nas ofertas mais recentes, o mercado vem exigindo maior engajamento e participação dos sponsors. Atualmente, sponsors investem no mínimo 2,5% dos recursos totais a serem captados (podendo este valor ser bem superior), e os recursos da oferta são depositados em uma conta escrow, que rende juros e remunera os investidores, no mínimo, a uma taxa pré-fixada. Além disto, os sponsors, ao divulgar a oferta, têm dado maiores detalhes quanto à estratégia do capital a ser investido, focando em empresas de melhor potencial e que ainda não tenham exposição relevante ao mercado de capitais.
Por conta da impossibilidade de realizar valuation de uma empresa sem qualquer atividade ou negócio, os IPOs geralmente são feitos com base em um valor fixo por ação (por exemplo, USD10/ação), não havendo o tradicional processo de bookbuilding. Isto, dentre outras vantagens, faz com que as ofertas possam ir a mercado de forma rápida e dinâmica.
O prazo médio de duração de uma SPAC é curto (não maior que 24 meses). Tal prazo visa garantir que a aquisição da target ocorrerá com a maior brevidade possível, e que os recursos dos investidores não ficarão indisponíveis por um prazo longo e indefinido. Antes da concretização do investimento pela SPAC em sua investida é comum que investidores convertam suas ações ou quotas no capital da própria investida, ou, em determinadas situações, realizem resgate do seu quinhão ou da rentabilidade auferida com as aplicações da escrow account.
O resultado do desenvolvimento do mercado de SPACs nos Estados Unidos é visível: em 2019 a Churchill Capital I adquiriu a Clarivate Analytics (empresa do setor de informações para a indústria de ciências ligadas à vida e saúde) por USD4,2 bilhões, através de recursos em parte captados via IPO de um SPAC.
Recentemente, em 22 de julho de 2020 o famoso empreendedor Bill Ackman (CEO da Pershing) captou USD4 bilhões, através da oferta de ações da SPAC denominada Pershing Square Tontine Holdings, ao preço de USD20,00 por ação. Com os recursos da oferta, Ackman pretende adquirir “unicórnio maduro”, como inclusive veiculado em artigos de junho deste ano. Esta foi a maior oferta da SPAC da história, demonstrando que, mesmo com o atual cenário de pandemia, a segurança gerada pelas SPACs é capaz de gerar excelentes resultados em uma oferta pública.
Este sucesso se deve, também, pelo fato da oferta de Ackman ter características únicas: Ackman, na qualidade de sponsor, não receberá qualquer tipo de compensação direta por ter idealizado a SPAC – não há taxas, comissões de incentivo ou outras formas de remuneração. Além disto, a própria Pershing investiu USD1 bilhão no veículo, demonstrando alinhamento com os demais investidores, e sendo este valor bastante superior ao que vinha sendo aplicado por outros sponsors em ofertas de SPACs.
A oferta realizada por Bill Ackman nos oferece uma série de lições relevantes: (i) o modelo de SPACs é resiliente mesmo em momentos de crise, em especial por ser geralmente capitaneado por pessoas com boa reputação e experiência nos mercados das empresas target; (ii) skin in the game é essencial para o sucesso da oferta, e bem como um sponsor experiente e inovador; (iii) mesmo em um momento de economia desafiadora e incertezas, ofertas visando a captação de grandes quantias são viáveis, caso utilizados os veículos adequados e oferecidas condições atrativas.
As SPACs ainda não foram adotadas no território Brasileiro. A iniciativa mais próxima disto é recente: em 14 de julho de 2020, a HPX Corp., SPAC liderada por Bernardo Hees (economista e ex-CEO da Kraft Heinz), levantou USD 220 milhões em um IPO. Segundo consta das informações da oferta, o veículo foi constituído com o objetivo de investir exclusivamente em companhias brasileiras.
Com o atual patamar de juros no Brasil, e maior apetite para ativos de risco, entendemos haver um cenário adequado para a adoção de novas modalidades de oferta, inclusive para oferta em moldes semelhantes aos IPOs de SPACs.
Como afirmou Karen Snow em entrevista no início deste ano[4]:
“A habilidade dos investidores de criarem veículos de investimento criativos como SPACs é o que estimula o crescimento econômico e traz mais atenção para o mercado de capitais Americano”
Ainda que a legislação Brasileira não preveja expressamente modelos como as companhias de “cheque em branco” previstas na Rule 419 do Securities Act, há espaço para a adoção de modelos semelhantes às SPACs, com certas adaptações e ajustes.
Prova do sucesso das SPACs é o fato de que este ano metade dos IPOs Americanos foi realizada via SPACs. Considerando que a Lei nº 6.385/76 foi criada com inspiração no Securities Act, e que a CVM vem, historicamente, adotando regras e normas que, em certa medida, se assemelham com aquelas editadas pela SEC (Securities and Exchange Commission), nos parece que haveria espaço para a adoção de veículos semelhantes a SPACs no Brasil, inclusive como forma de viabilizar inovação e refinamento nas captações de recursos em território nacional.
Talvez o maior desafio para ofertas públicas de SPACs sejam trechos da Instrução CVM nº 400/03 que, em seus artigos 32 e seguintes, estabelecem condições especiais para realização ofertas de empresas em fase pré-operacional, a saber, dentre outras: (i) apresentação de estudo de viabilidade; (ii) a oferta voltada apenas para investidores qualificados; (iii) período de restrição à negociação (lock up) de 18 (dezoito) meses, contados da data do encerramento da oferta.
Como SPACs não são exatamente empresas pré-operacionais, haveria argumentos para um potencial pedido de dispensa de registro ou de requisitos (dado, por exemplo, que o SPAC representa um instrumento de investimento indireto em companhia em operação e com potencial de crescimento /geração de valor). Entretanto, estas situações deverão ser estudadas caso a caso, inclusive a partir da estratégia do sponsor vis a vis a target company.
Nos parece ser este o momento ideal para novas formas de captação no mercado brasileiro. As SPACs, como prova a experiência internacional, podem ser uma alternativa interessante de investimento e captação.
Em caso de dúvidas sobre este e outros assuntos, favor nos contatar através do e-mail societário@aplaw.adv.br.
Atenciosamente,
Azeredo Santos & Ugatti Peres – A&P Advogados
[1] Conforme disponível, exemplificativamente, em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/para-enfrentar-crise-empresas-fazem-novas-ofertas-de-acoes.shtml e https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/07/06/varejo-lidera-ofertas-de-acoes-durante-a-pandemia-com-emissoes-de-r-17-bi.ghtml.
[2] Conforme dados disponíveis em https://www.spacdata.com/. Acesso em 23 de julho de 2020.
[3] Conforme disponível em: https://www.fool.com/investing/2020/06/27/special-purpose-acquisition-companies-why-spacs-ar.aspx. Acesso em 23 de julho de 2020.
[4] Tradução livre do trecho “Investors’ ability to create innovative investment vehicles like SPACs spurs economic growth and brings more attention to U.S. capital markets”. Conforme disponível em https://www.nasdaq.com/articles/the-spac-conference-2020-highlights-the-emergence-of-spacs-in-the-public-markets-2020-01. Acesso em 24 de julho de 2020.